Sarney, há 30 anos, assume a Presidência da República e leva o país à democracia plena
Há exatamente 30 anos começava, de fato, a redemocratização do país, depois de 21 anos de ditadura militar, marcada por perseguições políticas, cassações de mandatos de parlamentares legalmente eleitos, prisões arbitrárias, mortes de presos vítimas de tortura nos porões de quartéis, censura à imprensa e o uso da violência para conter a insatisfação popular, manifestada em passeatas pelas ruas das principais capitais do país.
Mas, tudo começou a mudar no dia 15 de março de 1985, quando José Sarney é empossado como Presidente da República. Ele era vice na chapa que o Colégio Eleitoral escolhera dois meses antes, encabeçada por Tancredo Neves. Mas, problemas de saúde impediram-no de assumir a Presidência da República. No dia 21 abril faleceu.
Sarney já naquela época era um dos mais experientes e habilidosos políticos e essas foram qualidades fundamentais para levar o país à verdadeira democracia em que vivemos hoje. Poucos meses depois de assumir a Presidência da República, tratou de convocar uma nova Constituinte, que deu ao país uma Constituição moderna e liberal. Sarney queria abrir imediatamente todos os espaços para que as forças vindas da clandestinidade tivessem espaço para exercer, dentro da democracia, seu desejo de participação. “Precisávamos atualizar o Brasil em matéria de direitos sociais porque nossas constituições tinham sempre predominância da visão econômica”, relembrou em uma entrevista concedida ao jornal Correio Braziliense, em 2011.
Sarney foi obrigado, também, a negociar a “moratória” em termos sempre soberanos, diante de uma herança explosiva gerada pelas estripulias financeiras que vinham desde JK e que foram maximizadas pelo regime militar, relembra o consultor do Senado, Pedro Costa em livro que publicou sobre Sarney.
“Entre 1985 e 1990, o Brasil não teve déficit no balanço de pagamentos. Nessa época tínhamos importante indústria naval, exportávamos navios, praticamente não pagávamos fretes; o controle cambial, mecanismo que nenhum país desenvolvido abre mão, era um importante elemento de contensão das perdas de divisas; e não havia, também, nenhuma subserviência do Governo Federal para com entidades multilaterais, como o FMI. Por tudo isso, a dívida interna e externa, no governo Sarney, não aumentou. As principais empresas estatais, durante a “Nova República”, não estavam deficitárias e nem proibidas de investir em nossa infraestrutura; Nos cinco anos do governo Sarney não houve déficit no balanço de pagamentos. O governo brasileiro precisou nos seus cinco anos de governo apenas de 12 bilhões de dólares. Quer dizer: Sarney em cinco anos quase não usou recursos externos, não aumentou a dívida. Pelo contrário, economizou” – destaca Pedro Costa.
Sarney deu transparência e controle às contas públicas. Para isso, criou a Secretaria do Tesouro e o SIAFI – vigentes até hoje, uma das mais importantes ferramentas no controle e acompanhamento de gastos públicos. Assim, acabou com a farra da chamada conta-movimento do Banco do Brasil, que permitia aos governos estaduais retiradas na boca do caixa, e foi unificado o orçamento da União. Se o assunto são investimentos públicos, os resultados durante o governo Sarney ainda são melhores se comparados com outros governos. Em 2004, ocorreu o menor gasto com investimentos públicos desde 1984. Foram R$ 6,9 bilhões no primeiro ano de Lula, contra R$ 6,1 bilhões no último ano completo de mandato do general João Figueiredo. A série mostra que o melhor ano em investimentos públicos foi 1987, em pleno governo Sarney – R$ 21,7 bilhões em valores já atualizados. Por isso, o último grande investimento na recuperação das rodovias, por exemplo, foi feito no governo Sarney, com a restauração de mais de 5 mil km, enquanto os governos seguintes deram prioridade à construção de novos trechos sem injetar dinheiro na manutenção do patrimônio existente.
Mas, o governo Sarney não deve ser medido apenas pelos números positivos da economia. É importante recordar que Sarney inovou também na área social e cultural. Foi no seu governo que passaram a existir os ministérios da Reforma Agrária, da Cultura e da Ciência de Tecnologia e foi instituída a primeira Lei de Incentivo à Cultura, atual Lei Rouanet. O seguro-desemprego, que hoje sofre cortes do governo da presidente Dilma, foi instituído pelo Sarney, além dos programas de distribuição diária de milhões de litros de leite e do vale-transporte. Criou a Fundação Palmares e o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher.
É do governo Sarney, a criação do Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde – SUDS, que universalizou o atendimento médico. Com o IBAMA, o governo da Nova República mostrou ao mundo que a questão ambiental estava sendo enfrentada pelo país, com redução efetiva de queimadas e desmatamentos na Amazônia.
Na política externa, reatou relações diplomáticas com Cuba, se aproximou mais da, então, União Soviética e China, estreitou os laços de amizade com a Argentina, o que resultou na criação do Mercosul. Em relação aos Estados Unidos manteve uma firme posição de defesa dos interesses nacionais.
Sua história na vida pública começou muito antes da Presidência da República e prossegue até hoje. Sua biografia é ampla e repleta de emoções. Esteve presente em praticamente todos os grandes momentos da história política do país desde os tempos da ditadura de Getúlio Vargas. Em 1955, aos 25 anos, assumiu uma cadeira na Câmara dos Deputados, que na época funcionava no Rio de Janeiro, como suplente na vaga deixada por Lima Campos, que havia falecido. Três anos depois, conseguiu se reeleger deputado federal e em janeiro de 1966, assumiu o Governo do Maranhão.
Sarney esteve sempre na política e a única coisa que conseguia afastá-lo era literatura. Escritor reconhecidamente talentoso publicou vários livros e ocupa uma vaga entre os “imortais” da Academia Brasileira de Letras. Hoje se dedica a escreve uma autobiografia definitiva.
Foi durante sua longa carreira de senador, que Sarney pode exercitar em toda sua plenitude seu estilo conciliador e de negociador hábil. Mesmo nos períodos em que sofreu sistemática campanha de difamação por parte alguns setores da mídia, Sarney manteve seu estilo e jamais processou um jornalista ou criou dificuldades para o trabalho da imprensa dentro do Senado Federal. Em todos os casos em que era acusado de atos impróprios, como corrupção, nepotismo, uso da máquina pública, Sarney pacientemente enviava aos editores, repórteres ou colunistas cartas de desmentidos com explicações detalhadas sobre as acusações de que era vítima, rebatendo sempre ponta a ponto. Mas, seus esforços eram, como se diz popularmente, “chover no molhado”. Os autores das denúncias em 99% dos casos não lhe davam o direito de resposta.
Ao Correio Braziliense, numa entrevista, Sarney disse que estava acostumado em apanhar. “É bom bater no Sarney”, ironiza e fala em aguardar o julgamento da história. Sarney relembra: “Na Presidência da República, sofri um combate muito grande. No meu discurso de saída, fiz uma avaliação em que digo que o tempo corrige até as críticas mais violentas feitas. Todos os excessos são corrigidos. Quando leio a história do Brasil, vejo a proporção que ela vai construindo e a possibilidade que a pessoa tem dentro da sua vida política. Também me vejo assim. Um dia o Chico Caruso me perguntou como eu via as charges dele. Respondi: como se eu fosse uma terceira pessoa”.
Os que o acusam de ter apoiado a ditadura, demonstram desconhecer a história recente do país. Sarney foi, na realidade, o único governador que protestou contra o AI-5 e não apoiou. O único governador do Brasil. Cinco dias depois da revolução, todo mundo desertou com medo. Ele foi para a tribuna e disse que ninguém cassaria mandato se não fosse da forma prevista pelas leis e pela Constituição do país. A biografia do Sarney, escrito pela jornalista Regina Echeverria, consolida seu estilo conciliador. Os diários do Geisel, que o Heitor de Aquino deu à jornalista, por exemplo, mostram que integrantes do governo militar consideravam-no um homem liberal, um democrata que estava querendo sempre, dentro do Congresso, organizar um grupo para evitar que a democracia caísse no estilo Pinochet, no Chile.
Sarney, em entrevista aos jornalistas do Correio Braziliense, fala dessa época e relembra que integravam o grupo ele, Ulysses Guimarães, Tancredo Neves, Roberto Freire, Fernando Santana, políticos de diversas tendências. “Conseguimos uma coisa que nenhum país conseguiu: uma ditadura composta por militares que eram eleitos de quatro em quatro anos. Nós evitamos que tivesse um ditador aqui, o que, na realidade, era o que a linha-dura queria. Há pessoas que dão importância muito grande aos heróis, aos mártires. Mas há aqueles que não deixam de ter o mesmo valor procurando construir dentro de soluções. Sempre gostei de ser o homem do diálogo”, destacou.
“Eu aceitei a realidade, mas sempre achando que isso era um caminho para voltarmos à plenitude democrática. Quando senti que isso era impossível, rompi com eles e renunciei ao PDS, porque, naquele momento, senti que nosso esforço tinha sido em vão. Eu julgava que o Brasil entraria numa convulsão. E aí me aliei a outros para possibilitarmos uma transição democrática pacífica. Nisso, prestei um grande serviço ao país. O próprio Tancredo Neves disse que, sem a minha renúncia, seria impossível a transição” – relembra o ex-presidente Sarney.
O que muita gente não sabe ou finge não lembrar é que Sarney foi o relator da Emenda Constitucional nº 11, de outubro de 1978, que extinguiu a Arena e o MDB e restabeleceu a pluralidade partidária e teve participação ativa nos entendimentos que levaram o ex-presidente João Figueiredo a assinar a lei da anistia, em agosto de 1979.
Sarney foi eleito presidente do Senado por quatro vezes e ele gosta de ressaltar que nunca pleiteou cargos, sempre foi convidado a concorrer, especialmente em períodos de crise política. Em 1995, foi eleito pela primeira vez com 61 votos a favor e 7 contra. Em sua gestão, que terminou em 1997, criou o Instituto Legislativo Brasileiro – ILB, o Centro de Consulta Popular, o Alô Senado, o Jornal do Senado, a TV Senado e o Conselho Editorial. Voltou à presidência da Casa nos períodos de 2003/2005, 2009/2010 e 2011/2012.
Aos 84 anos de idade, 60 deles dedicados à política, o senador José Sarney (PMDB-AP) anunciou em junho do ano passado a aliados que não iria se candidatar à reeleição ao Senado. Sarney justificou a aposentadoria dizendo que pretende ficar mais tempo ao lado de sua mulher, Marli, que está doente e vive em São Luís, capital do Maranhão, e se dedicar mais a literatura, inclusive com a produção de uma autobiografia definitiva. Mas, não se iludam aqueles que acreditam no isolamento do ex-presidente Sarney. Ele continua ativo é tem sido um interlocutor frequente nas reuniões políticas que o presidente do Senado, Renan Calheiros, tem promovido na residência oficial. Sua experiência não pode ser ignorada, neste momento, em que o país assiste uma crescente insatisfação popular.
Uma coisa ninguém pode negar quando se analisa a trajetória política de Sarney. Ele foi incansável em seu trabalho pelo país, pelo cidadão, pelo desenvolvimento econômico e social e jamais alguém encontrará atos de intolerância de sua parte. Mas, adverte que “a política passou a ser a arte de liquidar o adversário. A política deixou de ser a arte do diálogo, de encontrar meios de conciliação, na qual o interesse público sobrepujasse tudo”.
Jorge Rosa